
Foto: Katia Ribeiro
Por Daniele Moraes
Priscila não era doula e não conhecia ninguém da obstetrícia, foi uma escolha que se deu através do caminho de vestibular mesmo. “Cheguei a fazer orientação vocacional e me matricular em administração de empresas na UNESP, mas não fiz nem meio semestre”, conta.
Guiou-se um pouco pelos conselhos da avó. “Ela muito me dizia que eu devia ser cuidadora. Ela falava: como assim você vai fazer administração? Você tem que cuidar! Você é cuidadora!”. E foi folheando o manual de vestibular da Fuvest que encontrou seu caminho: “Quando vi a opção do curso de Obstetrícia me veio muito essa ideia de cuidar de mulheres, que me fascinou”.
A escolha certeira
Começou então a pesquisar sobre a profissão, prestou vestibular e passou na USP. Desde o início do curso tinha essa sensação de ter tido essa sorte grande na escolha da profissão. E quando começou a pesquisar e entender sobre parto humanizado e a epidemia das cesáreas no Brasil ficou ainda mais entusiasmada e motivada.
Durante as primeiras semanas do curso, teve aula com a parteira Priscila Colacioppo sobre parto domiciliar. “Eu fiquei extremamente encantada. Foi mais ou menos o sentimento das pessoas quando assistem “O Renascimento do Parto” hoje em dia”, relata Priscila.
Em 2009, formou-se na segunda turma no curso de Obstetrícia, enfrentando todas as batalhas pelo reconhecimento e valorização da profissão, desde a conquista para campo de estágio até a garantia de regulamentação profissional junto ao Conselho Regional de Enfermagem (Coren-SP). “Foi bem difícil, mas fomos mais fortes”, conta.

Foto: Katia Ribeiro
Choque de realidade
A primeira coisa que Priscila fez ao terminar o curso foi procurar um trabalho, atuando em um hospital particular pequeno. Foram tempos difíceis. Passou a viver um grande conflito entre o que acreditava como ideal e a realidade do sistema de assistência ao parto vigente no Brasil. “Fiquei menos de seis meses. Não aguentei. O meu chefe falava assim: corta uma episiotomia. E depois falava: você não cortou por que não sabe? Você se formou na USP e não sabe fazer uma episiotomia? Foi difícil”.
Apesar de saber que todas as experiências são bem-vindas e importantes para sua formação, a obstetriz se questionava: “Como eu vou chegar naquele caminho de acompanhar parto humanizado, ter autonomia, trabalhando em hospital?”. Em paralelo, cursava o mestrado. “Sempre me interessei pela carreira acadêmica, além disso, a busca por conhecimento e as práticas baseadas em evidências científicas são de extrema importância para um profissional dito ‘humanizado’. Trabalhava neste hospital e fazia mestrado em Saúde Pública na USP, estudando taxas de cesárea”. Foi nesse momento da vida que Priscila ficou grávida. “Foi a gota d`água”, relata. Deixou o trabalho no hospital e dedicou-se durante os meses da gravidez e da licença-maternidade aos estudos.
O nascimento de Laura, em um parto domiciliar acompanhado por duas obstetrizes, só veio reforçar aquele desejo que já estava pulsando desde os tempos da graduação. Decidiu que queria trabalhar com o que de fato acreditava para as mulheres. Hoje, Priscila tem certeza de que o nascimento de Laura foi fator fundamental para essa escolha. “Eu já estava bastante decidida na faculdade, mas depois do nascimento da minha filha vi que não dá para trabalhar com algo que seja diferente disso”.
A aproximação à rede da humanização
Assim, em 2011, pouco tempo após a licença maternidade e o término do mestrado, começou a ampliar seus contatos na área e trabalhar com alguns médicos da rede da humanização do parto. “Comecei a acompanhar partos hospitalares e alguns domiciliares”.
O sonho de trabalhar apenas dentro do conceito da humanização se concretizou muito antes do que imaginava. “Já nesses primeiros partos eu vi que era possível. É claro que é importante se sentir segura, buscar caminhos, começar devagar, um parto ou outro, ir sentindo, formar uma rede bacana de profissionais para se apoiar, mas é preciso ter coragem”, diz.
Com a conclusão do mestrado surgiu a oportunidade e conquista de ser aprovada em concurso para atuar como professora assistente no curso de Obstetrícia da USP “Fui a primeira graduada a voltar como docente”. Priscila concorda que esses dois anos como docente também contribuiu para a consolidação de seus conhecimentos e para a ampliação da autoconfiança no seu trabalho. “No início, me sentia muito jovem para ser professora, mas a confiança e aprendizado cresceram e creio que foi uma boa troca”. Foi uma troca muito legal com os alunos. Foi bem rico, nada melhor do que ensinar para aprender mais e consolidar o que você já sabe”.
No final de 2012, Priscila e mais duas obstetrizes – Maíra Bittencourt e a Bianca Zorzam – formaram o grupo Parteiras La Mare, que acompanha partos domiciliares. “Foi uma etapa importante para mim”. O consultório do La Mare fica dentro de uma ONG chamada Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. “Começamos a atender lá e acabamos nos aproximando mais do Coletivo e de todas as tarefas e da parte administrativa da ONG”.
Com isso, desde 2014 tornou-se uma das diretoras do Coletivo, que tem uma história muito ligada aos conceitos da humanização. “O coletivo foi um dos pioneiros em São Paulo nessa ideia de respeito a mulher, de direitos sexuais e reprodutivos, do não ao excesso de medicalização”, destaca.
Desde a sua formação, Priscila já trabalhou com praticamente todos os médicos da humanização em São Paulo. “Atendi partos com a maioria, tentei sugar conhecimento, tanto das obstetrizes mais experientes quanto dos médicos, e estou crescendo a cada dia. Cada vez mais fortalecida, melhor profissional”, sente.
Múltipla e feliz
Como se não bastasse a vida de parteira, mãe, esposa e diretora de uma ONG, Priscila decidiu também emendar o doutorado. “Quando fui dar aula na Obstetrícia vi que para crescer precisava ter o doutorado. E pensei: se não for agora, não vai ser mais”, conta. O estudo foi realizado com o banco de dados do Sistema de Informação de Nascidos Vivos do município de São Paulo, defendeu a tese em fevereiro de 2017. Assim, o desejo de trabalhar na docência ainda existe, mas é um projeto a longo prazo em sua vida. “Eu ainda acho que tenho muito a aprender para voltar a dar aula. Posso ser uma professora muito melhor daqui um tempo, com tudo que eu estou aprendendo”.
O apoio do companheiro André ao longo de sua caminhada de desafios e conquistas foi fundamental. “Ele se manteve ao meu lado, incentivando para que eu voltasse a prestar vestibular e seguir em frente quando surgiram as dificuldades nos primeiros anos de carreira”. Ele me anima e me dá forças! Esse companheirismo me ajuda a avançar em cada etapa”, ressalta.
A falta de programação da sua rotina e o tempo restrito para se dedicar à família são para Priscila alguns dos desafios da profissão. “Você tem que desmarcar quase tudo da sua vida, perder momentos importante com a sua família e abdicar de muitas coisas da sua vida pessoal”. Mas esse é também o valor da profissão, “estar disponível para a assistência”, acredita. “Minha filha fala que eu sou parteira. Gosta de ver vídeos e fala: a mamãe vai lá porque o Guilherme (sic) vai nascer, ela gosta do assunto. A professora conta o quanto ela ensina as amiguinhas na escola sobre parto e sobre dores que não são ruins”.
Assim, todo o tempo livre é dedicado à família. “O que sobra de tempo é para me dedicar para a minha família e estudar”. Priscila acredita na máxima que diz que quando se trabalha com o que ama, nem parece que se está trabalhando. “Quando eu leio isso, eu penso: é pra mim”.
O privilégio da escolha
Hoje tem o privilégio de trabalhar exclusivamente com profissionais da rede de humanização do nascimento. “No começo acompanhava com outros. Hoje eu tenho o privilégio de escolher com quem eu vou acompanhar. É um trabalho de equipe, então, todo mundo tem que estar no mesmo conceito, senão não funciona legal. Não é bom para ninguém”.
Em 2015, aceitou o convite para integrar o quadro de sócios da Casa Moara, atuando em assistência aos partos hospitalares, com a equipe médica composta pelos obstetras Andrea Campos, Esmerinda Cavalcante e Jorge Kuhn, e domiciliares com as parteiras Marcia Koiffman e Natalia Rea. “Vir para a Moara é uma forma de trabalhar com as pessoas que eu mais desejo. Sempre me identifiquei bastante com o trabalho da Andrea e do Dr.Jorge e quando surgiu o convite eu fiquei muito emocionada e honrada”.
Sua bela trajetória profissional só confirma que a intuição da avó estava certa, ela nasceu para cuidar. “Minha avó chegou a me ver formada se orgulhava da minha profissão e em ver a minha satisfação com o trabalho. De fato, eu sou bem feliz e abençoada”.