Por Luciana Benatti
A vida pessoal e profissional do obstetra Jorge Kuhn se divide em antes e depois de seu encontro com as ativistas da humanização do parto, em 2003. Hoje, um importante nome desse movimento, ele continua sendo taxado de “vaginalista” pelos colegas.
Uma temporada de estudos na Alemanha, onde aprendeu a importância das obstetrizes na assistência ao parto, e o encontro com o movimento da humanização, foram dois divisores de águas na vida e na carreira do obstetra paulistano Jorge Kuhn. “Eu, que sempre fui chamado de ‘vaginalista’ pelos colegas, voltei da Alemanha ainda mais vaginalista, porque vi que eles faziam coisas lá que nós não tínhamos coragem, ou não sabíamos, fazer aqui”, conta o médico.
No período em que passou dando plantões no hospital da Universidade Livre de Berlim e atendendo gestantes, entre 1990 e 1991, ele teve contato com diversas técnicas para contornar dificuldades do parto normal evitando cesáreas. Entre elas, a versão cefálica externa, manobra para virar de cabeça para baixo os bebês pélvicos (sentados) ou transversos, a vácuo-extração, uma ventosa colocada na cabeça do bebê no período expulsivo do parto para ajudá-lo a nascer, a coleta de sangue do couro cabeludo fetal, para confirmar ou não o diagnóstico de sofrimento fetal durante o parto, e a amnioinfusão, que consiste em injetar soro fisiológico pela vagina para diluir o mecônio (primeiras fezes do bebê) dentro da barriga da mãe. Usuais no exterior, essas técnicas nunca interessaram seus colegas brasileiros. “Ao contrário, tudo o que eu propunha para facilitar o parto normal, ninguém tinha vontade de ouvir”, lamenta ele.
Embora não tenham encontrado eco na universidade, as técnicas que aprendeu influenciaram a sua própria prática: “Minha taxa de cesárea, que antes de ir para a Alemanha era de 25%, caiu para 10% a 15%”, relata. Cerca de dez anos depois da experiência, ainda sem encontrar interlocutores no meio acadêmico, ele os achou na internet. “Pesquisando o assunto, caí no site Amigas do Parto, que representava uma verdadeira revolução. Só então descobri que existia gente que pensava como eu.”
Um tempo depois, no intervalo de um evento na Prefeitura de São Paulo, ele foi procurado por duas das quatro fundadoras desse grupo de mulheres, Ana Cristina Duarte e Andrea de Almeida Prado. Com seu jeito direto, Ana Cris logo disparou algumas perguntas. “Você atende convênios?”, quis saber. “Não, estou largando os convênios”, ele respondeu. “Por quê?”, questionou ela. Ele explicou que depois de atender por dez anos os planos de saúde, de 1991 a 2001, havia concluído tratar-se de uma fórmula difícil de dar certo, uma equação que não fecha. “Faz parto em casa?”, perguntou ela em seguida. “Já pensei em fazer, mas tenho medo”, disse ele. “Medo de que?”, devolveu ela. Ele adorou seu jeito direto. Começava ali uma parceria que continua até hoje: ela se tornou obstetriz e ele é um dos médicos na sua retaguarda. “Esse movimento mudou minha vida”, costuma dizer.
Trabalho em equipe
Um novo encontro entre os dois marcaria o início da formação de uma equipe humanizada de assistência ao parto. No final de um evento em que Ana Cris falou sobre o papel da doula e Kuhn estava na plateia, ela se aproximou e disse: “Jorge, você faz versão cefálica externa?” Ele disse: “Faço”. “Qual é a sua taxa de sucesso?” “Cerca de 50%.”. Como doula, ela acompanhava uma gestante que queria muito ter o bebê em casa de parto, mas não podia, porque ele estava pélvico, uma situação que foge ao protocolo desse tipo de instituição.
Kuhn aceitou fazer uma tentativa de virar esse bebê no dia de seu plantão no Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros, do SUS, onde atuou por 34 anos. Mas a manobra não teve sucesso. “Na hora eu vi a cara de decepção do casal. Ela começou a chorar, dizendo que então teria que fazer uma cesárea. Sem pensar, eu falei que não precisava ser cesárea, que poderia ser parto normal. Foi um erro: eu não era o obstetra dela. Mas na hora eu não pensei em nada, queria apenas ajudar.”
Dois dias depois, apareceram todos – a mulher, o marido e a doula – em seu consultório. Kuhn se assustou: “Não quero vocês aqui, voltem para a sua obstetra”, ele disse à gestante, então na 39ª semana, cujo bebê continuava pélvico. Os três argumentaram que queriam apenas conversar. E ele acabou concordando.
O nascimento de Pedro Gabriel, em 30 de março de 2003, foi um marco na história da equipe que mais tarde se reuniria na Casa Moara porque uniu pela primeira vez os obstetras Jorge Kuhn e Andrea Campos – então médica residente em seu plantão das segundas-feiras no Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros –, além de Ana Cris, como doula. E logo num parto pélvico!
“Não faço cesárea a pedido da mulher”
Hoje, a maioria das pacientes chega até ele por indicação do movimento da humanização. Sem exceção, buscam o parto normal. “Quando eu era credenciado em vários planos de saúde, havia gestantes que, durante uma das consultas de pré-natal, manifestavam a vontade de ter uma cesárea. Nesses casos, eu falava: temos um tempo para saber a razão de você não querer tentar o parto normal. Se ela não mudasse de opinião, eu recomendava um colega. Não faço cesárea a pedido da mulher, muito embora ache que ela tenha esse direito”, diz.
Para ele, a maioria das mulheres que pedem cesárea têm medo da dor. “Quando o parto saiu de casa e foi para o hospital, as mulheres esqueceram muitas coisas. A confiança nelas, principalmente. Acho que isso vai demorar muito tempo para mudar.” Os médicos, segundo ele, também têm sua parcela de responsabilidade: “Eles se apossaram desse conhecimento e passaram a achar – e isso nem é proposital – que a mulher não é capaz mesmo”, avalia Kuhn.
Nadando contra a correnteza, ele afirma que os partos que lhe dão mais prazer são aqueles em que não precisa intervir. “Nada me dá mais contentamento do que estar apenas observando. Os maridos falam: você não fez nada! É isso mesmo. Não é dar o peixe, é ensinar a pescar. Gosto de ver quando a mulher consegue sozinha e eu fico ali apenas como um observador ao seu lado”, explica.
Parece natural, mas essa é uma postura que não veio de um jeito fácil: ao contrário, foi conquistada com humildade e disposição para rever com frequência a sua própria prática médica. “Eu sou muito aberto. A medicina é a ciência das verdades transitórias. O que é verdade hoje pode mudar daqui a dez anos”, justifica. E cita como exemplo a episiotomia, o corte no períneo feito para ampliar a abertura da vagina na hora do parto. “Até vinte anos atrás, eu cortava o períneo de toda mulher no primeiro parto e nas que tinham tido episiotomia em parto prévio. Então a taxa de episiotomias era de 100%! Só não fazia quando não dava tempo. Depois fui estudar, ver as evidências científicas. E mudei. Tem que ter essa inquietação.”
Pouco depois de voltar da Alemanha, Kuhn também começou a estudar a Medicina Baseada em Evidências (MBE). Foi quando descobriu que mais de 90% das práticas em Obstetrícia não eram embasadas em evidências científicas sólidas, mas em opiniões de especialistas: é a tal da “Medicina Baseada em Eminências”, como brincam alguns médicos. “A MBE casa muito bem com a atenção humanizada que busca, além de devolver o protagonismo feminino no parto, evitar práticas inefetivas ou maléficas, ou seja, tudo o que é desnecessário.”
Nascimento difícil
Nascido num parto difícil, com fórcipe alto, em que ele e a mãe quase morreram, Kuhn, que é filho de um casal de auxiliares de enfermagem, passou boa parte da vida ouvindo de todos ao redor que seu interesse por Obstetrícia era uma tentativa de resgatar o próprio nascimento. É uma possibilidade.
Deixando de lado a subjetividade dessa ideia, o que se sabe de concreto é que a Faculdade de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes, onde Kuhn estudou, estimulava ao final do terceiro ano concursos para selecionar acadêmicos de Medicina que desejassem fazer estágio em várias maternidades de São Paulo. Ele, que já se interessava pelo assunto, estudou com afinco e conquistou uma vaga na extinta Associação Maternidade de São Paulo (AMSP), na rua Frei Caneca, onde estagiou de 1976 a 1978, quando se formou.
“Aprendi muito da parte prática na querida e saudosa AMSP. No final do quarto ano de Medicina eu já fazia fórcipes: parto normal era arroz com feijão. No final do quinto ano, já fazia cesáreas. Naquela época, a gente botava muito a mão na massa”, lembra ele. Continuou naquela maternidade nos dois anos seguintes, quando também começou a fazer residência médica de Ginecologia e Obstetrícia (GO) no Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros (HMLMB). Hoje, integrante do SUS, o hospital na época se chamava Casa Maternal e da Infância Dona Leonor Mendes de Barros e era gerido pelo extinto Inamps.
Os plantões no HMLMB foram uma excelente oportunidade de praticar a Obstetrícia. “Lá nasciam 10 a 20 bebês por dia. Com esse volume, dificilmente teria no consultório um caso que nunca tenha visto lá. E muitos casos que vi lá eu nunca terei no consultório, por serem muito raros. É uma maternidade de alto risco, uma das minhas paixões.”
Foi no “Leonor” que conheceu a também ginecologista e obstetra Esmerinda Maria Cavalcante, a Mema – ele era residente e ela, estagiária – com quem casou e teve três filhos: Renata, Clara e Otávio. Como os partos dela foram fáceis, ele “pegou” os três bebês. “Mema é boa parideira”, elogia. Trabalham juntos até hoje: ela costuma auxiliar os partos atendidos por ele.
Na mesma época, no mesmo hospital, Kuhn conheceu o obstetra Wilson Ariê, uma de suas mais importantes referências profissionais. “Ele foi meu chefe na residência em GO e continuou sendo meu chefe até minha aposentadoria em 2013. Costumo dizer que minha residência durou 34 anos! Ariê, um médico completo, que sempre estimulou os outros a estudar, um verdadeiro professor e guru”, elogia.
Dois grandes amores profissionais
Em 1983, começou a estudar a Cardiotocografia, método usado para avaliar a vitalidade fetal, tema de sua dissertação de mestrado concluído em 1987. O doutorado, motivo da viagem para a Alemanha, acabou ficando inconcluso. “Estudei a influência da anestesia peridural sobre a frequência cardíaca fetal durante o trabalho de parto. E vi o quanto ela pode influenciar o bebê. Uma pena que não consegui concluir”, lamenta. No entanto, o doutorado está fora de seus planos de futuro. “Perdi o encantamento”, alega. Mas não cogita abandonar seu trabalho de Professor Assistente Mestre da Disciplina de Obstetrícia Fisiológica e Experimental do Departamento de Obstetrícia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. “Ensinar é outro amor que tenho, um trabalho que me deixa muito motivado.”
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* Luciana Benatti é jornalista e autora do livro Parto com Amor (Panda Books). Texto originalmente publicado em julho de 2010